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CAMINHOS DA MEMÓRIA!

Há dias, encontrei o meu amigo Simão. Durante a conversa que mantivemos, notei que estava ligeiramente embriagado. Segundos depois e com a voz embargada, passou a contar-me uma história que, gostosamente, partilho e lhe agradeço. Certo dia, ao levantar-se, olhou pela vidraça da janela e viu que o dia outonal estava ameno. Decidiu então desfrutá-lo, aproveitando um pouco da liberdade perdida durante a pandemia para dar uma volta pela sua Lisboa. Saiu de casa e calcorreou ruas, praças, travessas, becos e docas. Exausto, sentou-se à mesa de uma esplanada e pediu um café. Enquanto aguardava, semicerrou os olhos e veio-lhe à memória os tempos de “menino e moço” e, emocionou-se! “Revisitou” tempos em que, ainda imberbe, da varanda da casa de seus avós paternos, se deliciava a observar a passagem dos elétricos cujas rodas nos carris, a cada curva, pareciam ‘gemer, num esgar de dor’; dos autocarros de dois pisos que se inclinavam tanto ao curvarem, que parecia que iam tombar; das horríveis brigas entre estivadores que começavam no interior de uma taberna e terminavam no passeio; dos sem-abrigo que dormiam nos becos; dos convidados ‘VIP’ que ao domingo, enchiam a sala de jantar, para lautos repastos, bem regados e sempre finalizados com conhaque e, indiferentes aos pobres que mendigavam à porta; dos vendedores ambulantes; do pregão do ardina ainda criança anunciando os vespertinos; dos magotes de gente que regressava da bola; das luzes de néon provindas das docas e que se espraiavam pelas ruas e edifícios, tornando-os amarelados, como se fosse ‘uma pintura a óleo’. […]. E “reviveu” memórias dos ‘passeios’ junto ao rio, cujas águas lhe ‘murmuravam algo,’ talvez, um ‘chamamento’; das voltinhas de bicicleta, alugada, à volta dos armazéns de vinhos. Até que, foi abruptamente interrompido do deleite das suas memórias, quando ‘deu fé’ de uma figura que se ‘plantou’ na sua frente, observando-o. Olá Simão, há quanto tempo não te via! Perplexo, Simão respondeu: Olá. Desculpa, mas não te conheço! Pois, é natural que não me conheças, mas eu conheço-te desde jovem. Passei imensas vezes na tua rua, quando, com as minhas amigas, regressava das matinées dançantes e encontrava-te sempre à varanda. Elas gozavam comigo: lá está o teu “Varandas”, o que me irritava sobremaneira, porque tinhas invadido o meu coração, ‘sem saber como’, pois, nunca trocámos uma palavra. Mas a tua ‘imagem’ inquietava-me! Falei com o teu primo que era músico no conjunto que animava os bailes, para que te convencesse a ires lá. Nunca apareceste e a ‘paixão platónica’ foi-se esvanecendo e finou-se! Mas… ‘acompanhei-te’, de alguma maneira, através dos poucos amigos comuns e mais tarde pelas redes sociais, embora nunca tivesse tido coragem de te pedir amizade, talvez, porque soube que, alguns anos depois, casaste. Ah… desculpa, chamo-me Mariana, e se me permites a pergunta. Porque não frequentavas os bailes da coletividade? Simão olhou-a fixamente e respondeu-lhe: por timidez e alguma ‘insegurança’! Nunca me sentiria à vontade! Sou filho de pais divorciados e fui abandonado pelo progenitor, irresponsável e cobarde, com alguns meses de vida. Faltou-me a figura paternal e “sobrou-me” a maternal que, acredito, inconscientemente, me aprisionou num espartilho comportamental, privando-me da liberdade que moldasse o meu caráter e me tornasse num adulto sociável e independente, capaz de enfrentar, responsavelmente, as vicissitudes da vida. Paralelamente a este ‘doloroso’ constrangimento, minha mãe obrigava-me a visitar os meus avós paternos, onde nunca me senti bem-vindo! Era recebido pela criada e nunca pelos meus avós. Esta levava-me para o escritório onde era suposto fazer uns rabiscos no quadro preto. E ali ficava, até que me chamassem para almoçar ou eu próprio resolvesse ir até à varanda. E assim, fui ‘crescendo’ e me tornei num adolescente antissocial. Aprendi a ‘viver sozinho’. Mesmo quando acompanhado, sentia-me só! Estudava e os meus passatempos eram a leitura e a escrita. Compreendes agora! Entretanto e, graças a amigos comuns, encontrei a mulher que me ajudou a alterar a minha filosofia de vida. Casámos e temos uma filha e um filho que, são o nosso maior legado e o nosso orgulho e, cinco netos. Casados há 44 anos, sou muito feliz! E sabes porquê? Porque ainda tenho a meu lado a mulher que amo e que cuido com todo o carinho e dedicação, sendo retribuído na exata medida do que dou. Teresa é a companheira da minha vida e a mãe dos meus filhos, e por isso, tenho por ela, um profundo respeito, afeição e uma eterna gratidão! Continuo a ser, nalguns comportamentos, o reflexo das minhas memórias, mas exorcizei o passado e construi a pulso minha própria ‘identidade’! E tu? Eu… (hesitação) casei duas vezes, tenho três filhos e quatro netos. Virou-lhe as costas e uma lágrima deslizou-lhe pelo rosto e apressou-se a sair dali. Adeus Simão, até um dia. Vou buscar os meus netos ao infantário e já estou atrasada! Adeus Mariana e sê feliz! Mariana afastou-se e, em surdina, articulou: não, nunca fui feliz! E Simão pensou, mas não disse: obrigado Mariana por teres gostado de mim!

AUGUSTO MOITA

05 de novembro de 2021.

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